'Kits Covid': mais que inúteis, um desastre para a saúde pública

'Kits Covid': mais que inúteis, um desastre para a saúde pública

“Kits Covid” prescrição por convicção médica no tratamento precoce da doença contra covid-19 se transforma em bomba-relógio desastrosa para a saúde. 


Kits Covid: mais que inúteis, um desastre para a saúde pública
Presidente da Republica Jair Bolsonaro apresenta medicamento Cloroquina como eficaz contra covid-19. Estudos cientificos negaram.


A distribuição dos “Kits Covid” e a prescrição destes medicamentos como profilaxia ou tratamento precoce da doença por médicos mal-informados ou politicamente motivados armam uma bomba-relógio desastrosa para a saúde pública brasileira, alertam especialistas como a médica infectologista Sílvia Costa, professora da Faculdade de Medicina da USP. Ela destaca como exemplo a azitromicina, antibiótico de um tipo conhecido como macrolídeo, muito usado no tratamento de infecções bacterianas comunitárias, isto é, que se espalham facilmente numa população, como otites, amidalite e alguns tipos de pneumonias, além de infecções sexualmente transmissíveis, como a gonorreia, e micobactérias não tuberculosas.

“Ao usar de maneira maciça este antibiótico como está acontecendo agora no Brasil, estamos ‘queimando’ um antibiótico muito útil do ponto de vista da saúde pública”, considera. “Além disso, estudos mostram que a azitromicina altera o microbioma da pessoa, mudando e diminuindo sua diversidade, o que pode levar a uma maior chance de desenvolvimento de diversas doenças, incluindo obesidade, problemas cardíacos e até psiquiátricos”.

Outra preocupação dela é o uso abusivo da ivermectina. Sílvia conta que o antiparasitário, quando administrado de forma subcutânea, atualmente é dos poucos tratamentos disponíveis para a estrongiloidíase disseminada, forma letal da parasitose endêmica do país provocada por vermes do gênero Strongyloides que ataca principalmente indivíduos imunossuprimidos, como pacientes de transplantes e HIV/Aids.

“Estamos levando ao desenvolvimento de resistência pelo verme para um uso que praticamente não temos outras opções, mais uma vez ‘queimando’ uma droga que deveria ser reservada e preservada para estas situações”, diz.

Mais que isso, Sílvia também já observa casos de reações adversas severas ao medicamento devido ao mau uso, que em última instância pode provocar hepatite. Ela conta ter recentemente recebido em seu consultório uma paciente com um quadro de dermatite, com a pele vermelha e coçando pelo corpo, porque toda vez que tinha contato com alguém com suspeita ou confirmação de COVID-19 se automedicava com ivermectina.

“Não só não há evidência nenhuma de que estes kits tenham alguma ação contra o SARS-CoV-2 (coronavírus que provoca a COVID-19) como eles só aumentam as chances de efeitos adversos, que algumas vezes podem ser graves”, ressalta a médica, também integrante do comitê científico da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) que desde o começo da pandemia alerta para a falta de comprovação científica ou comprovada ineficácia destas medicações para a doença. A SBI recentemente foi alvo de perseguição política e legal pelo seu posicionamento e orientações para a população. “Não é para tomar ivermectina de forma frequente, uma atrás da outra, pois o risco de efeitos adversos graves vai aumentando à medida que a pessoa vai tomando um remédio uma, duas, três vezes seguidas”.

Flávia Rossi, diretora médica da Seção de Microbiologia da da Divisão de Laboratório Central (DLC) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, por sua vez, explica que, com o tempo, o uso de antibióticos vai selecionando as bactérias mais resistentes à sua ação, processo que está sendo acelerado pelo abuso na sua prescrição e administração na pandemia.

“Antibióticos, de forma geral, selecionam bactérias mais resistentes ao longo do tempo, mas o uso descontrolado acelera ainda mais esta possibilidade, e compromete tratamentos de futuras infecções por selecionar, mais rapidamente, cepas multirresistentes”, resume. “Estudos recentes mostraram que a indicação profilática de azitromicina não apresenta evidências suficientes para justificá-la de forma padronizada nos pacientes com COVID-19, mas temos diferentes publicações na literatura médica que evidenciam o uso indiscriminado de antibióticos como relacionado à resistência bacteriana, com consequente aumento de mortalidade e de custos na área de saúde”.

Flávia também cita, como doenças que podem ter seu combate prejudicado pelos “Kits Covid”, infecções por bactérias respiratórias como a S. Pneumoniae e a H. influenzae, responsáveis por otites e pneumonias e DSTs como a gonorreia, bem como o tracoma, conjuntivite crônica causada pela bactéria Chlamydia trachomatis que é a principal causa evitável de cegueira do mundo. Ela destaca, porém, temor maior relativo à DST, objeto de alertas da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a emergência de uma apelidada “supergonorreia” desde 2016.

“Quanto à gonorreia, observa-se recentemente a ocorrência da resistência às drogas utilizadas como opções principais para o tratamento, como as cefalosporinas e azitromicinas, mesmo em países desenvolvidos”, lembra. “A carência de diagnóstico preciso e a persistência de tratamentos empíricos reforçam a redução de opções terapêuticas atuais, especialmente em países com menores recursos em saúde, onde a doença é mais prevalente", afirma. "A maior preocupação é que existem somente três classes de antibióticos como opção para tratamento da gonorreia. A resistência ao ciprofloxacino em gonococos, anteriormente droga de escolha, é disseminada na maioria dos países, assim como diversas localidades já descreveram a emergência da resistência à azitromicina e cefalosporinas de espectro estendido ceftriaxona injetável ou cefixima oral, as quais são os últimos recursos para o tratamento. No intuito de evitar a continuidade da emergência dos números de gonococos multirresistentes, a OMS recomenda, desde 2016, o tratamento duplo com ceftriaxona e azitromicina”.

Ambientes hospitalares

O abuso de antibióticos pela população na pandemia de COVID-19 também se reflete no ambiente hospitalar. Revisão de estudos publicada no ano passado com dados de cinco países indica que embora apenas 6,9% dos pacientes de COVID-19 apresentem infecção bacteriana associada, 72% deles mesmo assim receberam antibióticos, solapando todo um esforço de anos para controlar o desenvolvimento das apelidadas “superbactérias” nos hospitais, diz a americana Steffanie Strathdee, decana de Ciências da Saúde Globais da Universidade da Califórnia em San Diego, que publicou artigo sobre o assunto na prestigiada revista científica Lancet e ficou estarrecida com a informação sobre a distribuição de antibióticos em “Kits Covid” no Brasil.

"Isto é muito preocupante. Antibióticos não devem ser usados para tratar infecções virais. Eles só devem ser usados para tratar infecções bacterianas quando clinicamente indicado, sob os cuidados de um médico”, afirma. “Se antibióticos são usados livremente quando desnecessários, as bactérias que eles selecionam tendem a ser resistentes a antibióticos. Elas podem se tornar superbactérias resistentes a múltiplos antibióticos e se espalhar para outras pessoas, por contato direto ou indireto. Estas superbactérias podem acumular mais e mais genes de resistência a antibióticos que, no fim, tornam-se resistentes a todos os antibióticos que temos para tratá-las. Isso significa que mesmo um arranhão ou pequena cirurgia pode virar uma infecção intratável, levando a amputações e morte. Foi o que quase aconteceu com meu marido, e foi a razão de eu ter escrito o livro The Perfect Predador (A Predadora Perfeita, em tradução livre)”.

No livro, Steffanie relata como o que a princípio parecia uma intoxicação alimentar contraída pelo seu marido Tom Patterson numa viagem de férias para o Egito em 2015 se transformou numa batalha de vida ou morte contra uma superbactéria. Conhecida como Acinetobacter baumannii, a antes considerada fraca bactéria “aprendeu” a incorporar genes de resistência a antibióticos de outras bactérias até se tornar letal e quase invencível. No caso de Patterson, a vitória só veio graças a um tratamento revolucionário e ainda experimental com vírus conhecidos como bacteriófagos, que evoluíram naturalmente para atacar bactérias.

Opção que agora contempla a corretora de imóveis Loredana Minici Antonello, de 34 anos. Seu pai, o aposentado Luigi Minici, 78 anos, está internado em estado grave no CTI do Hospital da Unimed de Belo Horizonte com um quadro de sepse e falência múltipla de órgãos. Luigi, que chegou ao hospital com COVID-19, está sendo atacado por três micro-organismos, dos quais dois estão na lista dos super-resistentes: a mesma Acinetobacter baumanni que atingiu o marido de Steffanie e outra da lista de superbactérias conhecida como ESKAPE, a Pseudomonas aeruginosa.

"Estamos procurando por alternativas e assim encontramos o tratamento da Dra. Strathdee. Ainda precisamos saber se ele se aplica ou não ao caso do meu pai, e se vou conseguir trazer isso para cá”, diz Loredana. “Ainda não esgotamos todas as esperanças e o que o hospital tem a oferecer, mas, se não der certo, não vejo outra opção”.

Steffanie, por seu lado, lembra que, fora a tuberculose, os micro-organismos da lista ESKAPE acrônimo que além das citadas Acinetobacter baumanni e Pseudomonas aeruginosa inclui Enterococcus faecium, Staphylococcus aureus, Klebsiella pneumoniae e Enterobacter spp estão entre os patógenos que representam as maiores ameaças à Humanidade.

"Já tivermos surtos de Acinetobacter baumanni entre pacientes de COVID-19 nos EUA, e mesmo antes da pandemia -19 projetava-se que a resistência antimicrobiana causaria uma morte a cada três segundos em 2050”, cita. “A COVID-19 vai piorar ainda mais esta crise de superbactérias, então precisamos começar a nos preparar desde já”.

Alerta também dado por Flávia Rossi, diretora médica do laboratório do hospital da USP:

"No ambiente hospitalar o uso maciço de antibióticos é uma preocupação devida e deve ser bem monitorada, pois o Brasil já tem altas taxas de bactérias multirresistentes, que são de fato alarmantes. As infeções com cepas multirresistentes proporcionam aumento de mortalidade, morbidade e aumento dos custos hospitalares, além de diminuir a disponibilidade de leitos devido ao prolongamento do tempo de internação. Infecções por bactérias multirresistentes estão relacionadas com pior prognósticos. A ausência de diagnóstico microbiológico célere com identificação e antibiogramas destas cepas são pontos que também podem favorecer o uso inadequado de antibióticos e podem aumentar também o consumo de antifúngicos. Laboratórios de microbiologia bem equipados podem fornecer subsídios importantes no manejo adequado do uso de antimicrobianos”.

TrateCov

Alheio a esses perigos, o Ministério da Saúde voltou a “empurrar” cloroquina, antibióticos e desinformação para a população como solução para a pandemia de COVID-19. Segue desenfreada a prescrição, por alguns médicos, e a distribuiçã,o por governos, destes e outros medicamentos sem comprovação científica de eficácia ou já sabidamente ineficazes contra a doença. Fruto de tentativas, no início do ano passado, de fazer o chamado “reposicionamento” de remédios existentes para combate da então recém-descoberta doença, nenhuma das substâncias nestes “kits” que além da cloroquina e antibióticos, contêm vermífugos, vitaminas e minerais provou-se eficaz contra a doença nos estudos de boa qualidade, em especial ensaios clínicos randomizados, padrão ouro para este tipo de investigação, realizados desde então. Pelo contrário, alguns dos medicamentos, como a cloroquina, se mostraram até perigosos, devido aos potenciais efeitos adversos em algumas situações.

As  evidências cada vez mais claras e numerosas contra o uso destes medicamentos no combate à COVID-19 não impediram, no entanto, que o Ministério da Saúde continuasse a recomendar e estimular seu uso maciço e indiscriminado, 2021 adentro. Quando esteve em Manaus em 11 de janeiro último, dias antes da recente crise no fornecimento de oxigênio que vitimou mais de 50 pessoas nos hospitais da cidade - e que já sabia iminente, por exemplo, o ministro-general da Saúde, Eduardo Pazuello, tinha entre suas ações propostas para enfrentar o recrudescimento da pandemia no estado do Amazonas justamente o lançamento de um aplicativo cuja única função parece ser prescrever estes fármacos para qualquer caso que se apresente.

Intitulado “TrateCov”, o formulário clínico produzido pelo Ministério da Saúde brasileiro trazia, enquanto esteve online, como única abordagem farmacológica a imediata prescrição do pacote de “tratamento precoce” da COVID-19 sabidamente inútil mas defendido pelo governo federal, e que Pazuello depois mentirosamente negou ter, alguma vez, recomendado. O dito “protocolo” continua a fazer parte das orientações para manejo da doença publicadas no site de seu próprio ministério na internet.

Após o lançamento do aplicativo, que embora supostamente direcionado a profissionais de saúde podia, enquanto esteve online, ser acessado por qualquer pessoa, especialistas em tecnologia, jornalistas de dados e mesmo integrantes do público em geral analisaram seu código-fonte e fizeram simulações demonstrando que em praticamente qualquer situação preenchida o resultado é o mesmo: recomendação de “tratamento precoce” com o Kit Covid.

Até bebês recém-nascidos cujos únicos sintomas fossem nariz correndo e dor de barriga sairiam com uma “receita” para tomar cloroquina, hidroxicloroquina, os antibióticos azitromicina e doxiciclina e zinco, só escapando da indefectível ivermectina, outro “bezerro de ouro” da desinformação oficial, pela tenra idade, já que o vermífugo e antiparasitário é contraindicado para uso por crianças com menos de 15 kg ou menores de 5 anos, como consta de sua bula. Isto no caso da simulação feita por este autor. No site da edição brasileira do jornal espanhol El País, o jornalista Felipe Betim relata que o aplicativo “receitou” o pacote completo para seu gato de 1 ano de idade.

Diante das denúncias e tamanho furor que levou até o em geral omisso na pandemia Conselho Federal de Medicina (CFM) a se manifestar contra sua existência, entre outras razões, por induzir “à automedicação e à interferência na autonomia dos médicos”, nesta quinta-feira, 21 de janeiro, uma semana depois do lançamento oficial, o Ministério da Saúde tirou o aplicativo do ar. Mas não sem mais uma de suas desculpas esfarrapadas. Desta vez, segundo a pasta, a plataforma teria sido ativada “indevidamente” em razão de uma invasão de seu sistema. Nenhuma palavra, porém, sobre a comprovada ineficácia dos medicamentos recomendados.

Por Cesar Baima, jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência